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O motor perde potência com a idade?

Há consenso em dizer que máquinas e equipamentos perdem sua eficiência conforme os anos passam. Os automóveis também. Evidentemente, a aparência externa mostra os sinais de uso de maneira muito clara, assim como o zelo que o seu proprietário dedica à sua manutenção e conservação.

O acabamento também indica muitos sinais da qualidade de fabricação e, principalmente, da forma com a qual aquele exemplar foi tratado desde a sua saída da concessionária. Um modelo bem construído, trafegando em vias em boas condições e com um proprietário zeloso pode rodar por centenas de milhares de quilômetros e permanecer em excelente estado. Em oposição, um exemplar exposto ao “uso soviético” se deteriora em pouquíssimo tempo.

Mas e o motor? Também perde potência e torque com o uso? Os cavalos do motor “morrem”?

Não há uma resposta pronta. Esta pergunta se compõe de muitas variáveis além das conhecidas pelo senso comum, e podem trazer enormes variações. Os quatro fatores expostos nos parágrafos abaixo detalharão a resposta.

FADIGA: O CONCEITO-CHAVE DA PERDA DE POTÊNCIA

Na faculdade de engenharia mecânica, os professores submetem os estudantes a dois semestres apenas sobre este tema, tamanha a sua importância. Nos departamentos de pesquisa e desenvolvimento de motores, os conceitos de fadiga de materiais absorvem anos de trabalho teórico e experimental e milhões de dólares em investimentos.

Profissionais dedicam décadas de suas carreiras a estudá-la e tornam-se especialistas em fadiga de motores a combustão interna. Mas como sintetizar de forma simples este vasto arcabouço de conhecimento para o cidadão comum? E como ele influi na perda de performance dos propulsores?

Os fundamentos de fadiga de componentes se mostra muito simples. Ao fazer o projeto de motor, a equipe de engenharia fixa a vida útil esperada. Para as unidades mais antigas, fixava-se o padrão entre 400 mil e 500 mil quilômetros. A partir do final dos anos 90, a maioria dos fabricantes obedece a marca de 240 mil quilômetros de durabilidade sem falhas.

A partir daí, os projetistas conhecem o número de ciclos que cada componente realiza durante os quatro tempos da combustão, assim como seus materiais, formatos, massas, fluidos e demais características de projeto. Em contrapartida, a equipe fixa metas de potência, torque, consumo, emissões, disponibilidade de fornecedores, materiais e custos de fabricação e manutenção.

Partindo dos requisitos citados acima, outros parâmetros muito importantes são inseridos no projeto, tais como peso máximo do conjunto, possibilidade ou não de retífica, variação na transmissão, aplicação em diferentes veículos, existência de componentes dimensionados para nunca precisar de substituição – também conhecidos como “componentes de vida infinita” – e vida mínima de partes móveis para atingir os 240 mil quilômetros sem falhas.

Para calculá-la, utiliza-se o número de ciclos necessário para rodar a quantidade necessária, geralmente na casa das centenas de milhões (10^8) ou bilhões de revoluções(10^9). Os departamentos de engenharia utilizam modelos bastante complexos para chegar ao resultado, acrescentando às fórmulas de autores consagradas nas universidades diversos dados empíricos, obtidos em campos de testes.

QUILÔMETROS OU HORAS DE FUNCIONAMENTO?

Chegar ao resultado se mostra algo extremamente complexo, pois a variação na utilização do veículo se mostra enorme e o resultado deve ser definido em quilômetros, quando o mais correto deveria ser em horas de funcionamento, como ocorre com aviões e tratores.

Este artigo do site parceiro Amigos GearHeads aborda esta polêmica sobre a forma de aferição da vida útil em horas de uso ou quilômetros rodados. Naturalmente, a indagação procede. Do ponto de vista técnico, a medição da vida útil em horas de funcionamento se mostra mais correta em comparação à usual quilometragem devido à maior facilidade no cálculo do número de ciclos para calcular a vida útil.

Porém, este método se mostra de compreensão mais difícil para o motorista comum. Outro ponto que levou para este sistema consistiu na maior facilidade e menor custo da instalação de um hodômetro em relação a um contador de horas de funcionamento. Por estes motivos, convencionou-se a manutenção por distância percorrida.

Aprofundando a análise, levanta-se uma questão ainda mais importante. Ao passo que tratores e aviões operam em condições de funcionamento mais constantes, nas quais váriáveis como rotação do motor, carga, tipo de terreno, consumo de combustível, entre outros, os automóveis são submetidos às condições mais diversas. Inclusive a mesma unidade pode rodar em condições diferentes ao longo de sua vida.


O exemplo 1 ilustra as variações nos ciclos de uso urbano e rodoviário de dois automóveis:

MODELO 1 – SEDÃ MÉDIO COM MOTOR 2.0 ASPIRADO

  • Foi adquirido zero quilômetro em um grande centro urbano e circula predominantemente na cidade, em tráfego pesado e baixa velocidade média.
  • Após quatro anos, é vendido com 60 mil quilômetros para um motorista da mesma cidade que o utiliza para ir e voltar do trabalho, para fazer compras e lazer com a família. Roda longas distâncias diariamente, predominantemente em trecho urbano.
  • Aos quinze anos de idade, já no fim da vida útil e 250 mil quilômetros rodados, seu último dono o adquire em estado de regular para ruim, e o usa para rodar em estradas de terra até “virar pó” aos 300 mil quilômetros.

MODELO 2 – SEDÃ MÉDIO COM MOTOR 2.0 ASPIRADO

  • Seu primeiro dono foi um taxista que trabalha em um aeroporto de uma cidade do interior, situado à beira de uma grande estrada, transportando passageiros para municípios da região. A quase totalidade de sua quilometragem se dá em circuito rodoviário.
  • Após dez anos e 1 milhão e 200 mil quilômetros (1.200.000 km), o motor nunca passou por retífica e funciona perfeitamente, dando os primeiros sinais de necessidade de manutenção mais profunda. O taxista adquire outro modelo para o trabalho e transfere este para seu irmão, pois não consegue vendê-lo devido à altíssima quilometragem.

A INFLUÊNCIA DAS HORAS DE FUNCIONAMENTO

Segundo o critério defendido por muitos engenheiros e motoristas com maior conhecimento técnico, o critério de horas de funcionamento faz sentido de fato. Daí sua grande utilização em testes de bancada, realizados em dinamômetros. As fases iniciais do desenvolvimento de motores se baseiam em horas de uso e rotação média, conceito a ser explicado no exemplo 2.

Para explicar o conceito do exemplo 1, utiliza-se o conceito de velocidade média. Os engenheiros descobriram nos anos 60, ao iniciar estudos mais aprofundados sobre durabilidade, que a velocidade média do tráfego urbano é de 15 a 30 km/h, e de 80 a 90 km/h nas rodovias. Qualquer modelo com computador de bordo pode confirmar este dado com facilidade.

Na engenharia de motores, o cálculo de uma das variáveis mais importantes consiste em descobrir o número de ciclos que o motor gira em sua vida útil. Para tratá-la de forma isolada e simplificada, pode-se constatar que a velocidade média em rodovia se situa entre três e quatro vezes maior em relação ao circuito urbano.

Utilizando uma matemática bastante simplificada – posto que as fórmulas de cálculo de fadiga são extremamente complexas – o modelo 1, rodou 300 mil quilômetros a uma velocidade média de 20 km/h, enquanto o modelo 2, mecanicamente idêntico ao 1, circulou por 1.200.000 quilômetros em velocidade média de 80 km/h.

Fixando de forma arbitrária que a rotação média dos motores foi a mesma, o modelo 1 rodou um quarto da distância do modelo 2 a uma velocidade média quatro vezes menor, resultando em número de horas de funcionamento muito próximos entre si.

Isso corrobora a validade de as horas de funcionamento se mostrarem mais importantes que a quilometragem como forma de cálculo da vida útil do motor. Assim como o número de ciclos dos componentes, sua versão mais sofisticada aplicada pelos departamentos de engenharia para cada componente da unidade motriz.


O exemplo 2 tem como objetivo explicar a influência da rotação média do motor na vida útil:

MODELO 3 – COMPACTO COM MOTOR 1.0 ASPIRADO

  • Foi adquirido novo por uma empresa, com finalidade de servir como veículo de visita de seus funcionários a clientes em diversas cidades. Roda 90% da distância em rodovias bem pavimentadas.
  • Foi vendido para um lojista com quatro anos de uso e 200 mil quilômetros rodados. Seu motor se encontrava em mau estado de conservação, necessitando de retífica. A empresa decidiu vendê-lo devido ao alto consumo de combustível e custos de manutenção crescentes.

MODELO 4: COMPACTO COM MOTOR 1.6 ASPIRADO

  • Adquirido simultaneamente com o modelo 3, difere deste apenas na motorização. O proprietário de ambos é mesma empresa, a qual concede a mesma finalidade a ambos. Operam nas mesmas condições de uso.
  • Permaneceu na frota por seis anos e meio e 380 mil quilômetros rodados. Foi repassado ao mesmo lojista com o propulsor em boas condições de uso e operação normal. A empresa decidiu vendê-lo devido ao término do período de depreciação contábil e substituição por um modelo mais moderno e econômico.

ROTAÇÃO MÉDIA DO MOTOR X VELOCIDADE MÉDIA

O exemplo acima explicita um conceito do senso comum: que os motores mais potentes apresentam vida útil mais longa em relação aos de performance mais modesta. Todo motorista que já dirigiu em estradas com modelos equipados com motores aspirados de um litro sabe que ele gira acima dos 4 mil rpm para se manter a 120 km/h, regime que cai para a casa das 2.800 rotações por minuto no propulsor de 1.600 cm³.

Aplicando este conceito nos modelos 3 e 4, depreende-se com facilidade que a maior durabilidade da unidade de 1.600 cm³, em relação ao  de 1.000 cm³, se deve ao número de ciclos 30% menor, para percorrer a mesma distância, posto que ambos circulam a maior parte do tempo m rodovias e rotação quase constante.

Outros componentes mecânicos também influenciam a rotação média do motor e sua vida útil, especialmente a transmissão e diferencial mais curtos ou longos, e a calibração dos sistemas de injeção eletrônica, transmissão e avisos de revisão. Eles podem induzir o motorista a guiar o modelo de forma mais esportiva ou econômica e levá-lo para manutenção mais cedo ou mais tarde.

AFINAL, OS CAVALOS “MORREM” CONFORME O MOTOR GANHA IDADE?

Sim. Mesmo com a manutenção em dia e um proprietário zeloso, que respeita as características do veículo, a perda de potência com o tempo se mostra natural.  Da mesma maneira que uma pessoa perde sua vitalidade paulatinamente com o avanço da idade.

Para simplificar a análise, supõe-se que a manutenção da unidade motriz está em acordo com as especificações de fábrica.

Para melhor entendimento, deve-se compreender alguns fatores. Até os 80 a 100 mil quilômetros, propulsores com  manutenção em ordem não apenas preservam potência e torque originais como “ganham” de um a cinco cavalos devido ao amaciamento completo e melhor assentamento das partes móveis. Na linguagem popular, devido ao “motor estar mais solto”.

Após esta distância percorrida, as partes internas do motor começam a ter folgas maiores entre si e seus ajustes e assentamentos começam a perder precisão. O fabricante passa a recomendar óleo lubrificante de maior viscosidade para preenchê-la em modelos mais antigos, gerando maior atrito e resultando em pequena perda de potência, na casa de 5% a 10%.

Após os 200 mil quilômetros, aproximadamente, as sedes de válvulas perderam a estanqueidade original e as câmaras de combustão perdem compressão, causando maior perda de potência. Componentes de formato mais alongado, como comandos de válvulas, bielas e virabrequim podem apresentar alguma flexão, ficando “tortos” pelo uso.

Naturalmente, o controle de qualidade na fabricação poderá influir na perda de potência após longos anos de uso. Supondo um motor de 100 cavalos originais de fábrica e 15 kgf.m de torque, todos estarão ali após 100 mil quilômetros com a manutenção correta.

Aos 150 mil, estima-se que a potência decaia para cerca de 90 cv e 13 kgf.m. Para motores de projeto moderno, bem construídos e fabricados, ao final da vida útil de 240 mil quilômetros, dos cem cavalos originais, apenas vinte “morreram” e ele perdeu 5 “quilos de torque”.

Para motores mais antigos, de épocas nas quais os ajustes entre os componentes não se mostravam tão precisos. Supondo os mesmos 100 cavalos e 15 kgf.m de torque, logo aos 60 mil quilômetros já pode-se notar leve perda de performance. Aos 150 mil quilômetros, as unidades se encontram em boas condições de funcionamento, mas 20 cavalos “já morreram”.

Apesar da maior vida útil prometida, de 350 mil quilômetros, os propulsores já perderam cerca de metade de sua potência e torque. Daí vem a sensação de que um VW Santana AP 2.0 anda menos que um modelo 1.0 novo. Se o sedã médio da Volkswagen estiver com 200 mil quilômetros rodados, provavelmente deve entregar menos que os 80 cv de um “mil” zero quilômetro.

Vale lembrar que estes dados são empíricos, obtidos em testes de durabilidade realizados pelas montadoras e revistas especializadas ao colocar diversos modelos em dinamômetros. Na vida real, variações podem ocorrer para mais ou para menos. Outras alterações efetuadas pelos proprietários, mecânicas ou não, podem influenciar a performance.

JUNTANDO TUDO E OBTENDO O RESULTADO

Explicar um assunto tão complexo de modo simples se mostra um desafio e tanto até mesmo para engenheiros e professores universitários experientes, com décadas de carreira. A introdução do conceito de fadiga para o motorista comum auxilia na compreensão sobre o “envelhecimento” dos motores e sua perda de performance.

Este artigo tratou apenas das questões mecânicas e de projeto de motor, Outros fatores importantes como a influência do modo de dirigir do condutor, tipo de combustível e óleo utilizados e a correta manutenção preventiva e corretiva também contribuem para o resultado final.

Motoristas com bons conhecimentos de mecânica compreendem com maior facilidade, posto que conhecem os componentes mecânicos dos motores e seu funcionamento. Questões como a aplicação das horas de funcionamento ao invés da quilometragem ainda se encontram em discussão, devido à sua importância.

Aqueles que não dominam esta área do conhecimento também podem entender, de maneira didática, o porquê “os cavalos do motor morrem com o tempo”. E quantos “morrem”. E como “morrem”.

O motor sofre envelhecimento de forma similar aos organismos vivos. Assim como os médicos estudam os efeitos da idade nos seres humanos, os engenheiros de motores também o fazem em suas máquinas térmicas.

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