Lembranças automotivas da minha infância, parte 1
O autor deste texto tem apenas 34 anos, mas possui muitas lembranças do universo automotivo por acompanhá-lo desde criança, como a maioria dos entusiastas. Posto isso, pode-se fazer uma breve reflexão sobre a evolução da máquina neste ínterim, com algumas curiosidades. Os parágrafos abaixo enumeram os pontos mais marcantes:
1 – Só existiam quatro grandes montadoras
Volkswagen, GM, Fiat e Ford. Apesar de ainda serem as quatro maiores, perderam enorme fatia do mercado na última década, com sua participação sendo reduzida de 70% para 50% do total de vendas entre 2005 e 2015. Na década de 80, elas formavam um quase-oligopólio, com mais de 90% do volume.
Havia alguns pequenos fabricantes, com destaque para a Gurgel, a primeira tentativa de construir uma grande montadora brasileira. A Volkswagen era a líder absoluta, com mais da metade do mercado só para si. Os modelos mais vendidos eram o Gol e o Monza.
2 – Baixa qualidade
Naquela época se ouviam infinitos lamentos sobre a qualidade sofrível de nossos automóveis, chamados de carroças pelo ex-presidente Fernando Collor. De forma merecida. Andávamos em veículos com projetos de três décadas de defasagem em relação aos mercados desenvolvidos, e todos os lançamentos e inovações tecnológicas chegavam com anos de atraso em terras tupiniquins.
Problemas hoje inadmissíveis eram tomados como normais pelos consumidores da época, como infiltração de água no interior, ferrugem na lataria em unidades com menos de um ano de fabricação, peças de acabamento que se soltavam às dezenas. Problemas mecânicos em veículos novos se mostravam bastante comuns, incluindo alguns recém saídos da concessionária.
Apesar da insatisfação geral dos motoristas, os problemas eram aceitos passivamente por falta de opção e leis de proteção ao consumidor pouco desenvolvidas.
Apesar de nossos veículos atuais permanecerem defasados em relação aos mercados desenvolvidos, precisamos admitir que a situação evoluiu muito desde a década dos carros quadrados.
3 – Poucas opções de modelos
Como só existiam quatro grandes fabricantes e poucos atuavam em todos os segmentos, as opções eram restritas. Caso o consumidor desejasse um compacto, poderia escolher entre um VW Gol, VW Fusca, Chevrolet Chevette, Fiat Uno ou Gurgel BR-800. Hoje temos mais de trinta modelos disponíveis. Caso a preferência fosse por um sedan médio, o motorista levaria para casa um Chevrolet Monza, um VW Santana ou Ford Del Rey. Para os fãs de esportivos, havia somente o VW Gol GT/GTS/GTi, o Ford Escort XR3 ou o Chevrolet Kadett GS/GSi.
Em comparação com as dezenas de opções dos dias atuais, ter tão poucas alternativas de escolha se mostrava decepcionante.
4 – Abertura das importações
Para o sofrido consumidor brasileiro, uma grande alegria foi quando o ex-presidente supracitado reabriu as importações de veículos, possibilitando a compra dos mesmos automóveis e motocicletas vendidos nos grandes mercados. O brasileiro teve esperança na melhoria da qualidade dos produtos locais, maior número de opções de marcas e modelos e modernização da indústria local, estagnada por quase duas décadas de hiperinflação.
Sem dúvida, a abertura das importações marcou uma nova era na indústria automotiva tupiniquim, atraindo novos investimentos de novos entrantes e dos já estabelecidos. Após a abertura, houve grande modernização das empresas e produtos nacionais, e a possibilidade de comprar os mesmos veículos da Alemanha, Japão e EUA aumentaram o nível de exigência do motorista brasileiro.
5 – Os carros tinham pouquíssimos equipamentos e acessórios
Naquela época, ar condicionado, direção hidráulica e vidros e travas elétricos eram equipamentos de automóveis de luxo, inacessíveis à maioria dos motoristas. Ar quente era um opcional para veículos mais sofisticados, como os GM Monza e Opala e os VW Santana e Passat. Era raríssimo encontrar um carro com ar condicionado, e muitos donos retiravam o equipamento devido ao grande aumento de consumo de combustível e queda de desempenho.
Os modelos possuíam muitas versões, todas “peladas”. A diferença entre um VW Gol CL e GL consistia em acabamento mais caprichado. Rádio toca-fitas de fábrica praticamente inexistiam, os consumidores deveriam comprá-los em lojas especializadas a preço de ouro. Quem não se lembra das marcas Roadstar e Motoradio. Os mais sofisticados equipavam seus veículos com auto-falantes Selenium e equalizadores Tojo, considerados os melhores de sua época.
6 – Metade dos carros que circulavam eram Fusca
Este carismático besouro foi vendido até 1986 por aqui, com uma breve reaparição entre 1993 e 1996, o famoso Fusca “Itamar”, ex-presidente que pediu à marca alemã para torná-lo uma opção de veículo mais acessível. No final da década de 80 e início de 90, uma expressiva parte da frota brasileira era de Fuscas, algo que diminuiu nas capitais a partir da abertura das importações e perdurou por mais uma década nas cidades do interior.
6 – O mico dos motores a álcool
O Programa Pró-álcool foi iniciado em 1977 pelo presidente Ernesto Geisel e teve seu auge em meados dos anos 80, quando mais de 80% dos automóveis fabricados no Brasil eram movidos por esta combustível. Os idealizadores do programa alegavam a redução da poluição e como alternativa contra a dependência do petróleo, cujos preços tiveram três grandes choques nos anos anteriores.
Parecia uma excelente solução, mas esbarrou em dificuldades técnicas como dificuldade de partida em dias frios, necessidade de encher um pequeno tanque auxiliar de gasolina, corrosão dos componentes do motor e oscilação do preço do etanol de acordo com as safras e entressafras.
O projeto foi abandonado no final dos anos 80, quando houve uma forte alta dos preços internacionais do açúcar, fato o qual desencorajou a produção de etanol. Os usineiros preferiram produzir o produto mais rentável e houve desabastecimento nos postos, deixando muitos consumidores a pé e causando grandes prejuízos, pois o álcool tem apenas 70% da autonomia da gasolina e era vendido a valores mais elevados.
Com tal quadro, houve forte rejeição aos veículos movidos ao derivado da cana e eles viraram micos no mercado de usados até o aparecimento da tecnologia bicombustível (“flex”) em 2003.
7 – O velho e bom carburador
A injeção eletrônica surgiu em nossos automóveis em 1988 com o VW Gol GTi, e se popularizou na década seguinte. O carburador cumpria a mesma função, mas com algumas restrições. Dar partida no veículo exigia certo cuidado, pois segurar a ignição por mais tempo que o necessário podia “afogar” o motor. Quando isso acontecia, restavam apenas duas alternativas: ou o motorista desmontava a peça e soprava o combustível em excesso, para depois remontá-la, ou esperava cerca de dez minutos para esperar o fluido descer.
O problema mais emblemático residia nos veículos movidos a álcool, os quais tinham enorme dificuldade de dar partida a frio em dias de baixa temperatura. Me recordo que meu pai me acordava meia hora mais cedo no inverno, apenas para que eu esquentasse a VW Parati 1.6 a álcool para podermos sair e chegar no horário. Uma desculpa comum que funcionários contavam para seus chefes para justificar atrasos eram “o carro demorou para pegar”, “o carro afogou”, “o carro não pegava de jeito nenhum, tive que fazer pegar no tranco”.
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