Lembranças automotivas da minha infância, parte 2
Nesta segunda parte, o foco das lembranças automotivas da minha infância consistirá nas questões financeiras envolvendo os automóveis. Os mais velhos se lembram da enorme instabilidade econômica que assolou o Brasil até o início do plano Real, com inflação de 85% ao mês, diversos planos econômicos fracassados e grandes dificuldades impostas ao povo brasileiro. Alguns fenômenos bizarros ocorreram devido ao grave quadro estabelecido na década dos carros quadrados. Abaixo, descreverei alguns fatos que hoje parecem coisa de filmes de suspense:
1 – Não havia financiamentos
Devido à inflação galopante, a qual superava 2000% ao ano, fazer qualquer planejamento financeiro se mostrava inútil. Assim, tomar crédito era inviável, tanto para o consumidor quanto para o banco. O primeiro não sentia confiança em fazer uma dívida corrigida pela inflação, pois não era possível saber o valor da parcela seguinte e ela poderia ser impagável. Para o banco, o risco de inadimplência era imenso, e caso o crédito não tivesse atualização monetária, seria corroído rapidamente pela alta de preços.
Em suma, a única forma de adquirir um automóvel ou motocicleta era à vista. Quem tinha o dinheiro, comprava. Quem não tinha, ficava a pé. Simples assim. Parcelamentos eram raríssimos, no máximo em três cheques de 30/60/90 dias.
Os financiamentos como nós os conhecemos hoje surgiram a partir do advento do Plano Real, de 1994, responsável pela estabilidade da moeda. Os pioneiros eram feitos em 12 vezes, com taxas de 4% a 7% ao mês. Os prazos foram dilatados e os juros reduzidos paulatinamente, e hoje podemos adquirir nosso possante em até 72 vezes sem entrada ou com “taxa zero”. (Acesse este link e descubra porque taxa zero não existe).
2 – Carro era investimento
Quando uma moeda perde seu poder de compra rapidamente, a população troca o dinheiro por qualquer outro bem o mais rápido que puder. Em suma, o dinheiro era uma batata quente que todos queriam passar para frente, e o brasileiro fazia isso comprando tudo o que necessitava no mesmo dia em que recebia o pagamento. Para os investidores, ouro, dólar, imóveis e, claro, automóveis se mostravam uma excelente forma de preservar o valor de seu patrimônio.
Uma consequência bizarra das condições econômicas daquela época consistia no mercado de carros usados. A tabela dos zero quilômetro tinha reajustes frequentes, e o preço dos usados os acompanhava. Na prática, isso significava que se uma pessoa adquirisse em veículo, ele se valorizava em pouquíssimo tempo, pois seu valor era corrigido pela inflação, referência para a atualização para a tabela dos novos.
Posto isso, uma boa forma de lucrar com a inflação residia na compra de um automóvel para posterior venda em poucos meses, pelo dobro ou triplo do valor, devido à inflação. Muitos construíram fortunas com esta estratégia.
Outra característica marcante dos anos 80 consistia no preço dos veículos usados superar o dos zero quilômetro, devido à baixa produção pelas montadoras, objeto do item seguinte. Isso ocorria pelo simples fato de os seminovos estarem disponíveis imediatamente, enquanto os consumidores esperavam longas filas para receber os novos. O cliente pagava mais para sair dirigindo na hora.
3 – Produção insuficiente de carros novos. Ágio. Longas filas de espera.
Se comprar um usado se mostrava um grande desafio, adquirir um veículo zero quilômetro se mostrava um exercício de paciência até para monges budistas. Como o ambiente econômico era de grandes incertezas, as fabricantes investiam muito pouco, pois ficavam receosas de perder grandes volumes financeiros.
O resultado era grande demanda reprimida por parte dos consumidores e produção insuficiente para atender a todos, gerando longas filas de espera, as quais chegavam a mais de um ano para os modelos mais procurados. Caso o cliente tivesse pressa em receber o seu carro novo, a cobrança de ágio* de até 50% consistia em prática comum. Se ele optasse pelo método comum, a espera seria de pelo menos quatro meses. Outra opção consistia nos usados, a preços maiores em relação aos novos.
Curiosidade: após o Plano Real, a produção de veículos subiu de 764 mil veículos em 1992 para 1,624 milhão em 1995, ano no qual a grande maioria dos modelos eram oferecidos a pronta entrega.
4 – Os carros eram muito mais caros do que hoje
Antes de sair atirando dez pedras neste autor, que fique claro que eles continuam sendo os mais custosos do mundo e precisam ser mais acessíveis. Porém, a situação se encontrava muito pior há trinta anos.
Diversos estudos de instituições como FIPE, FGV e BACEN, fazem correção e atualização de preços da época para valor presente, nos quais constataríamos que aquele Fiat Uno Mille, então o veículo mais barato do Brasil, custaria quase R$ 50 mil em valores de hoje. Também veríamos Chevrolet Monza Classic custando R$ 160 mil e e Escort XR3 a quase R$ 200 mil!
Lembrando que não havia financiamento. De fato, naquela época somente os abastados tinham condições de comprar um carro zero. Mesmo entre os usados, a situação era crítica. VW Fusca e Brasília com vinte anos de uso não sairiam por menos de R$ 20 mil em moeda atual, e sujeito a todos os problemas mecânicos de um veículo dessa idade. Apesar de tudo, seus compradores ficavam muito satisfeitos por proteger seu dinheiro da inflação galopante.
Descrito o cenário acima, podemos concluir que ser proprietário de um veículo nos anos 80 e 90 era para pessoas de boa condição financeira. Os carros eram inacessíveis para a esmagadora maioria da população brasileira.
Em 1986, a taxa de motorização era de 15 pessoas para cada veículo, contra 5 para um nos dias de hoje. Apesar de os automóveis brasileiros serem os mais caros do mundo atualmente, há trinta anos eles se mostravam ainda mais custosos do que nos dias de hoje.
*Ágio – alguns consumidores desejavam receber seus veículos mais rapidamente. Para isso, pagavam um valor adicional para a concessionária para poder “furar a fila” de espera e conseguir seu carro novo com prioridade sobre os demais clientes. Tal prática era institucionalizada no comércio e grande fonte de lucro para as lojas.
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